A Associação Cultural Nação HQ – entidade fundada em 2004 e que a atua na pesquisa, difusão e valorização das histórias em quadrinhos – vem através desta carta manifestar apoio a Eduardo dos Reis Evangelista (Duke) em decorrência do processo judicial que o juiz de futebol Ricardo Marques Pereira está movendo contra o cartunista por causa da charge de 2010 sobre o jogo Cruzeiro x Ipatinga.
Duke, competente e premiado cartunista, é um dos mais importantes artistas da atualidade. Um ícone de profissionalismo e uma referência para quem deseja trabalhar nesse mercado. Além de publicar trabalhos próprios, também atua na promoção de novos profissionais, abrindo espaços para novos talentos nas páginas de domingo do jornal Super Notícia ou promovendo o importante Salão BH Humor, evento de referência em nossa área. A lisura de seu trabalho se comprova no fato de que, em sua longa e brilhante carreira de publicações diárias em um dos mais importantes jornais do estado, é a primeira vez que está sendo processado por um de seus trabalhos. Presidentes, governadores, prefeitos, senadores, vereadores, empresários, artistas, entre outros, já foram retratados em suas publicações, e todos eles sempre entenderam o caráter crítico de seu trabalho.
O significado de “charge”, originário da França, significa “carga”, a arte do exagero. Surgiu na Idade Média, no tempo em que a população começava a conquistar a liberdade de expressão através do desenvolvimento da imprensa, onde o povo ganhou voz para criticar e questionar injustiças. A charge ganhou força devido a sua reflexão sobre os acontecimentos cotidianos. O gênero reinterpreta a realidade usando a sátira como recurso, retratando figuras de poder e de destaque na sociedade e suas ações.
Não por acaso Angelo Agostini, artista que é considerado o primeiro a publicar uma história em quadrinhos no Brasil, também carrega em sua história o primeiro processo judicial contra a imprensa brasileira. Por causa da charge “O cemitério da Consolação no Dia de Finados”, publicado no jornal Cabrião em 4 de novembro de 1866, Agostini e o jornal foram processados por quem considerou o trabalho “uma torpe profanação”. O julgamento foi favorável ao réu, constando nos autos que o desenho foi considerado “um gracejo de mau gosto mas que não cabia punição pelo crime de ofensa a moralidade pública”.
Nem sempre o retratado se sente confortável com sua exposição. A charge não só expõe o seu erro, como potencializa a sua falha se utilizando do humor.
É o caso da charge em questão, onde o desenho expõe o erro do juiz que prejudicou o time do Ipatinga. Utilizando-se de um código comum do futebol, do juiz que é caso de polícia, o cartunista faz uso de um esteriótipo presente no imaginário do leitor para que haja uma cumplicidade com o público. O humor só se realiza através dessas metáforas associativas, do qual, sem ela, se tornaria apenas um desenho descritivo de uma cena.
A função de contestação e crítica de uma charge é o elemento essencial para a criação artística. A condenação de Duke no processo abre um precedente preocupante. Significa uma ameaça à criação de todos nós, profissionais, que usamos o humor para relatar, contrapor e questionar fatos e regras sociais.
Nos afastando do nosso ponto de vista de profissionais afetados, o que isso nos diz como sociedade? Estamos estabelecendo que, a partir daqui, o olhar crítico precisa se submeter a aprovação do criticado? Precisamos pressupor que o público é literal e incapaz de entender abstrações ou exageros satíricos? Que, por conta desta “inabilidade”, precisamos ser protegidos da ironia?
Ao aceitar esta necessidade pelo literalismo estamos nos comprometendo com uma rigidez de fatos que beira a falta do bom senso porque até a última vez que checamos, nas mídias em que aparecem, as charges vinham sob a classificação de humor e não notícia. Certamente, o trabalho de Duke não está sendo usado como evidência das “acusações” que faz em nenhum processo investigativo. Nós sabemos disso. O público sabe disso. O criticado sabe disso. E nenhuma das partes envolvidas precisa de decisõesjudiciais para se certificar que entendemos o que estamos vendo.
Em tempos de comissão de verdade que se reafirme em alto e bom tom, CENSURA NUNCA MAIS.
PS: A Nação HQ veementemente (mas com um sorriso irônico, é verdade) agradece se nenhuma ordem judicial for expedida contra as palavras marcadas entre aspas ou frases carregadas de sarcasmo contidas nesta carta. Elas tem função crítica e faríamos bem em interpretá-las criticamente, não é?.